Frete grátis nas compras acima de R$ 450.
Frete grátis nas compras acima de R$ 450 para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste.
Por que eu corro sozinho

Por que eu corro sozinho

(ou: o som do tênis batendo no asfalto como último vestígio de sanidade num mundo que corre em bando)

Existe uma teoria — que obviamente não encontrei em lugar nenhum, mas que me parece verdadeira o bastante para ser dita com convicção — de que toda prática esportiva, quando mediada por um coletivo, se aproxima perigosamente do teatro. O que não seria um problema, necessariamente, se o teatro em questão não fosse uma peça mal ensaiada com direção coletiva, figurino fluorescente e zero senso de timing.

Ou seja: clubes de corrida.

[Nota de rodapé 1: Antes que se forme a imagem mental equivocada de um sujeito misantrópico que odeia qualquer aglomeração humana com mais de três pessoas e um só assunto — o que, aliás, pode até ser verdade em alguns contextos — quero deixar claro que não sou contra correr em grupo. Eu até promovo encontros do tipo, às vezes. Só acho que talvez a gente tenha coletivizado demais uma prática que, em sua essência mais crua e incômoda, é profundamente individual. Tipo escovar os dentes. Ou sofrer.]

O que me fascina (e incomoda) nos clubes é esse impulso quase religioso de transformar cada quilômetro em comunhão, cada passo em liturgia, cada camiseta em símbolo tribal. Há algo de reconfortante nisso, claro. Correr junto é dividir a dor. Mas também é diluir a experiência. Porque, vamos ser honestos: quem está realmente correndo ali? Você? Ou o algoritmo social que exige registro, feedback, emojis, parabéns?

Correr sozinho é um ato radical de egoísmo — e talvez o último permitido socialmente antes de sermos considerados perigosos ou narcisistas em grau elevado. É decidir, conscientemente, que ninguém precisa saber. Que o treino aconteceu mesmo sem post. Que o tempo existe mesmo sem GPS. Que o corpo doeu sem testemunha.

[Nota de rodapé 2: Existe uma espécie de micro-orgulho perverso, confesso, em correr sozinho. Algo como: “olhem para mim não querendo que ninguém olhe para mim”. É feio. É vaidoso. É humano.]

E ainda tem o silêncio. Porque ao contrário do que dizem as campanhas motivacionais, o silêncio da corrida não é terapêutico por si só. Às vezes ele é só vazio mesmo. Um vazio que você preenche com todas as vozes que tentou calar durante o dia. A da planilha que você não preencheu. A do e-mail que você ignorou. A da criança interior que pergunta por que você parou de brincar e começou a medir tudo em bpm e minutos por quilômetro.

Mas é justamente nesse desconforto que alguma coisa acontece. Porque correr sozinho não é apenas possível; é brutalmente honesto. Ninguém vai ajustar o ritmo por você. Ninguém vai puxar conversa quando o mundo parecer desabar. Ninguém vai fingir que seu pace tá bom só pra manter o moral da equipe. É só você. Você e a topografia irregular da sua autossabotagem.

[Nota de rodapé 3: Às vezes, claro, você encontra paz. Um momento de fluxo. Um trecho em que a cidade parece colaborar, o farol abre na hora certa, o tênis encaixa na passada certa, o joelho não reclama, e por trinta segundos você se sente mais completo que qualquer homem que já pisou na lua. Mas esses momentos são raros e não aparecem em planilhas. O que aparece é o que você faz quando eles não vêm.]

O mundo hoje corre junto. Com playlist. Com fotógrafo. Com after. Com desconto na inscrição. Com camiseta dry-fit escrita vem comigo. E tá tudo bem. De verdade. Só que às vezes, tudo o que você precisa é correr contra. Contra o fluxo. Contra o hype. Contra a própria vontade de pertencer.

E se no fim do dia ninguém te viu correndo, ninguém te aplaudiu, ninguém notou que você saiu e voltou com a cara vermelha e as pernas pedindo arrego — talvez, justamente por isso, a corrida tenha funcionado.

Por Bruno Bocchese, fundador da BAD RUNNING e corredor ocasionalmente sociável.

Próximo