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Os donos da corrida

Os donos da corrida

Acontece algo curioso com certas pessoas quando elas fazem parte de algo antes dos outros. É como se o simples fato de ter chegado primeiro as autorizasse a determinar, dali em diante, o que é legítimo e o que é apenas cópia — mesmo que esse “algo” seja, digamos, colocar um pé na frente do outro em sucessão repetida por tempo indefinido, também conhecido como correr. A corrida, vale lembrar, uma das atividades mais primitivas da espécie humana, anterior à agricultura, à escrita e ao conceito de propriedade privada — e, ainda assim, hoje cercada por figuras que agem como se tivessem inventado o trote.

Esses pioneiros auto-intitulados — que não necessariamente foram os primeiros, mas foram suficientemente cedo para acreditar que isso importa — costumam carregar consigo um tipo muito específico de ressentimento. Um ressentimento elegante, travestido de opinião técnica, de zelo pelo esporte, de preocupação com a banalização da prática, quando na verdade é só uma forma de reclamar do fato de que outras pessoas descobriram algo que, até então, funcionava como um espelho onde eles se viam únicos. Eles têm sempre uma história sobre como, em 2007, completaram uma maratona sem GPS, guiados apenas por instinto, sofrimento e uma planilha impressa em papel sulfite. O tipo de relato que não serve para informar, mas para medir território. É uma performance de autenticidade — e como toda performance, tem um público-alvo: você, o iniciante, o intruso, o que ousou correr com um tênis bonito e sem parecer sofrer o bastante.

A lógica é quase religiosa: quem chegou antes entendeu melhor. Quem sofreu mais, sentiu mais fundo. Quem passou frio, calor, dor de lado, bolha e lesão no púbis, alcançou um tipo de verdade inacessível aos que começaram ontem, sorrindo, com Spotify aberto no modo Running Mix. E é justamente aí que mora o nó — porque a corrida, que poderia ser essa atividade simples, horizontal, de liberdade e leveza, vira palco de um conflito geracional inútil e mal disfarçado. O novo corredor, no fundo, não incomoda por correr errado. Incomoda por correr leve. Por correr feliz. Por não pedir desculpas por estar ali.

É claro que isso não é exclusivo da corrida. Toda subcultura passa por esse rito de amadurecimento: o momento em que a chegada de novos corpos, novos códigos e novas intenções obriga os veteranos a escolher entre adaptar-se ou tornar-se caricatura de si mesmos. É o velho dilema do punk que não aceita post-punk. Do clubber que odeia quem chega às festas hoje, como se techno tivesse que ser tocado apenas pra iniciados. Do skatista que acha que o cara com collab da Supreme não tem moral porque nunca comeu asfalto com um shape genérico. O tempo todo a mesma equação: quanto antes, melhor. Uma forma meio patética de tentar fixar valor num mundo que gira.

E no entanto, a corrida resiste a essas tentativas de controle. Porque ela não precisa de mediadores. Não exige sabedoria prévia. Não reconhece diplomas nem carteirinhas simbólicas. Ela só pede movimento — e o que se faz com esse movimento já é outro assunto. Pode ser sagrado. Pode ser fútil. Pode ser um treino. Pode ser fuga. Pode ser ego. Pode ser hábito. Pode ser uma mistura inexplicável de tudo isso, com trilha sonora ruim e roupa boa. E tudo bem.

Talvez a grande ironia seja essa: quem mais tenta proteger a pureza da corrida, invariavelmente, termina afastando dela aquilo que a torna viva — a capacidade de se reinventar, de incluir, de perder o sentido e reencontrar outro. Os donos da corrida, esses senhores do tempo, esquecem que até o relógio muda de função dependendo do pulso onde está. E que nem todo mundo corre para marcar o melhor pace. Tem gente correndo só para não perder o passo.

Bruno Bocchese, fundador da BAD RUNNING, corre desde antes do hype: mas só alguns meses antes.

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